CRÓNICAS

“… os próprios céus giram constantemente à volta, o sol nasce e põe-se, a lua aumenta de volume, as estrelas e os planetas movem-se, o ar ainda é remexido pelos ventos, as marés baixam e sobem, tudo isto indubitavelmente para a sua conservação, para nos ensinar que deveríamos estar sempre em movimento…”
BRUCE CHATWIN, o Canto Nómada


Prólogo

Agora parece-me tudo bem mais claro. O objectivo está traçado e a ideia de contar mil quilómetros de corrida continua a não me sair da cabeça. Só eu e os quilómetros, um duelo justo, claro e sem preconceitos – o meu desafio.
Sonho dia e noite com este momento e até já sinto os cheiros da terra e das estevas, o saudar das gentes castiças dos montes, o frenesim da vida urbana envolto num fascinante pulsar que se solta do peito a cada passada e percorre todas as artérias e veias até atingir o centro da alma.
Gosto de correr porque gosto, porque posso, é assim.
Provavelmente já percorri muitos mil quilómetros, não sei quantos, nunca o saberei. Também não sei de onde vêm esta inquietante forma de estar, mas gosto. Provavelmente, para alguns faria mais sentido se contasse as cervejas que se ingerem durante um jogo de futebol e esperar entusiasticamente pela próxima partida para ver se novo recorde é batido. Eu próprio já fui iludido pelos amigos nesta tentativa de entrar para o livro dos memoráveis, mas a falta de resistência ao álcool lançava-me sempre para os últimos lugares. Dura verdade é que à semelhança do que sucedia com as bebidas alcoólicas e apesar de ter praticado vários desportos, nunca fui um bom atleta. Sempre fiz parte do grupo daqueles que entram no jogo para se divertir, para começar e acabar. É este o espírito, começar e acabar. É sempre esta a regra, terminar.
Não sendo um competidor exímio o meu pensamento, em prova, anda sempre muito longe dos reais objectivos de uma competição. Corro aquilo que tenho de correr, nado aquilo que tenho de nadar e pedalo aquilo que tenho de pedalar unicamente com o intuito de chegar ao fim. Sinto-me bem com isso.

Não sei se será um refugio para esta inaptidão competitiva mas o certo é que cada vez mais duvido das intenções do modelo desportivo convencional e há já muito tempo que sonho em realizar algumas outras aventuras desportivas. Coisas que fujam do típico modelo pós-revolução industrial - sem prémios monetários que corrompam a fragilidade humana, sem medalhas ou taças de metais nobres, sem lista classificativa de concorrentes, sem juízes de prova que atestam a ética desportiva, sem a palavra doping, sem diminuir pessoas a números, sem direitos comerciais televisivos que roubam a novela das seis a milhares de avozinhas um pouco por todo o mundo. Tenho conseguido diversificar realizando algumas andanças no típico modelo do escolhe o destino e faz-te à estrada, umas vezes só, outras arrastando alguns amigos que partilham da mesma ansiedade compulsiva.

Percorrer distâncias… Os sonhos são empolgantes, entram-nos pelo corpo sem pedir licença, atormentam-nos a mente, inquietam-nos o coração, moem-nos o estômago até levarem uma parte de nós.
Comigo agora trago um sonho e resolvi emprestar-lhe os meus dois pés.




O desafio: cem dias mil quilómetros

A caminho de Aljezur, uma simpática povoação a sul de Portugal onde inegavelmente irei passar grande parte dos próximos cem dias, cruzo-me com uma personagem montada numa pasteleira a realizar o mesmo percurso que eu de carro. Raro é o dia em que não a vejo. Na parte de trás da bicicleta, uma saca de serapilheira enrolada, um garrafão de plástico de água mineral e uma enxada presa com uns elásticos improvisados. Nos dias de chuva acresce um plástico transparente, preso por uma guita à cintura, que cobre parte do corpo. Encosto na berma da estrada reduzido a uma insignificância marcada por um patético desejo de notoriedade que me leva a escrever estas páginas. Pego no telefone, procuro a função de calculadora e puxo pela cabeça: doze para lá, mais doze para cá, retiro os fins de semana e mais vinte e dois dias de férias, subtraio ainda mais alguns dias para as festividades - partindo do ingénuo pressuposto que a sua entidade patronal respeita a legislação em vigor. O resultado óbvio supera as minhas expectativas. Memorizo o primeiro dígito e importo-me somente com o número de algarismos que se seguem como se de trocos se tratasse, arredondando o valor para baixo. Cinco mil. O solitário ciclista percorre seguramente mais de cinco mil quilómetros por ano. Fascinante, pensei. A motivação para pedalar será presumivelmente o sustento da família, o desejo de pôr na mesa, para si e para os seus, a próxima refeição. O alento é o de poder viver da terra, viver com a terra. Não sei se assim será mas quero acreditar que sim.
Provavelmente ele trocaria sem hesitação a sua bicicleta pelo meu meio de transporte – mais cómodo, mais rápido, mais social. Sem hesitação também eu o trocaria pelo dele. Ficaríamos ambos felizes, de bem com a vida. Contudo, na ausência de coragem para o fazer, limito-me apenas a cobiçar a sua existência. Como alguém que já me dissera antes: live simply.
O velho ciclista segue o seu caminho de bicicleta e eu sigo o meu de carro.


 

Na rota da aventura

Sigo um caminho que é percorrido diariamente por algumas dezenas de pessoas locais que, tal como eu, sobem a encosta do castelo com os seus dois pés. O que nos distingue será a intenção com que o fazemos: para mim, a aventura, o desafio, a superação; para elas, a necessidade. O que nos marca será a diferença: eu com uns sapatos técnicos de corrida; elas com botas de couro envelhecidas pelo tempo. No entanto, estamos no mesmo caminho e realizamos o mesmo percurso. Eu para elas, mais um forasteiro que insiste em andar na rua de calções em pleno inverno. Elas para mim, uma fonte de inspiração. Como é possível duas pessoas no mesmo local, à mesma hora, a respirar o mesmo ar e iluminadas pelo mesmo sol, estarem tão longe uma da outra?
Corro pelas ruas da vila, onde outros andam no seu passo. Trago comigo a agitação, desperto olhares parados no tempo.
Nesta altura do ano, Aljezur é uma terra pacata, tudo parece estar no seu devido lugar. Bom para mim, mau para a população que vive do turismo. Provavelmente esperam que faça despesa, que beba um café, que compre uma fruta ou que o cansaço da corrida me dê alguma sede de consumo. Se estivesse em Marraquexe já tinha sido abordado para comprar souvenirs, se estivesse em Havana teria levado lápis e marcadores para distribuir pelas crianças. Aqui, na minha terra, não tenho nada para oferecer, procuro somente uma aventura como o poderia fazer em qualquer outra porção de mundo. Aqui mostram-me a banalidade. Porquê ir ao deserto ver passar a lendária caravana de todo-o-terreno Paris-Dakar, quando pela mesma via já passaram centenas de mauberes solitários nos seus camelos? Porquê atravessar a estrada mais alta do mundo numa bicicleta de montanha quando nela circulam, a pé, os habitantes locais?

Cada um de nós escolhe um caminho, uma rota, para poder seguir viagem. Nela crescemos, aprendemos, sonhamos. Não importa a razão, o motivo.
Todos os anos chegam a Aljezur centenas de turistas, viajantes, vindos das mais diversas partes da terra. Cruzam oceanos, palmilham trilhos, voam freneticamente pelas estradas com um único destino: o sudoeste de Portugal. Procuram, tal como eu, a aventura. Umas férias bem passadas. Alguns, os mais nómadas, apaixonam-se e vão ficando até o chamamento lhes agitar de novo alma.

Aqui as praias são inóspitas e o oceano é de um azul profundo. Os campos são verdes e cultivados. Não há hospitais. O posto de abastecimento de combustível encerra à noite e a noite por cá chega mais cedo. Não há centros comerciais nem grandes superfícies de consumo. As gentes são simples. Quem nasceu cá quer sair e quem vem de fora quer ficar.
Dizem que os elefantes são uns aventureiros audazes que caminham toda uma vida por sendas diferentes mas que quando pressentem a morte regressam de novo ao local do nascimento.
Dizem que somos como os elefantes.



Teorias da relatividade de um corredor urbano

Já passaram alguns quilómetros desde o momento da partida – muitos para quem pouco corre e poucos para quem muito quer correr. Começo a reconsiderar que percorrer mil quilómetros é pouco. Acaba depressa. E a seguir? O que vem?
Estou a cumprir uma média de cem quilómetros por semana, tal como previsto. Não sei se cumprirei o objectivo de os percorrer em cem dias mas a ideia de chegar ao fim aflige-me.
O dia já esteve mais bonito. O céu azul começa agora a ganhar novas tonalidades e estou longe de onde me possa abrigar. A chuvada é quase certa e tento imprimir mais velocidade às pernas mas elas não respondem da forma como gostaria. Já carrego alguns bons quilómetros e um desnível acumulado acentuado. Apetece-me andar mas não posso - não vem no contrato. Estou cansado ou melhor exausto. A poucos metros, no meio de uma vinha, está o meu próximo destino. Uma ruína que em tempos deverá ter sido um celeiro ou uma casa de animais e que agora será um excelente porto de abrigo. Mesmo a tempo – exclamei, feliz por ter ganho ao avanço das nuvens. Feliz por mais uma vitória. No meio do lamaçal que faz de chão sou surpreendido por uma outra respiração que não a minha. Sou assombrado pela sensação de um outro movimento que não o meu. Por um eterno momento, que durou um pestanejar de olhos, cortei a respiração, finquei os lábios e ouvi o coração dar um estrondo. Senti um bafo forte e quente no pescoço que indicava aquilo que eu temia. Não estava sozinho e o que quer que ali estivesse estava bem perto. Seguiu-se um longo rugido, familiar, ao qual já me habituara consequência de alguma experiência em corridas pelo campo. Uma vaca, duas vacas… uma manada de vacas, não sei bem quantos cães e um pastor. Todos expectantes e menos assustados do que eu. Todos à espera do mesmo. Por momentos senti-me de regresso à cidade, num cais de embarque a aguardar a passagem das urbanas, no final de um dia de trabalho. Aqui no entanto, não existem autocarros quem quer anda a pé, de bicicleta, ou tem uma motoreta para se deslocar. Os poucos autocarros que existem carregam as crianças dos montes para a escola de Aljezur, mas hoje é domingo. Os mais abonados transportam-se de carro até à sociedade para dois dedos de conversa.
Aceno com a cabeça num curto cumprimento ao velho companheiro de quarto e aguardo que a chuva passe. Sinto-me observado por dezenas de olhos e resolvo meter conversa, na esperança que alguém responda. Começar pelo óbvio pareceu-me bem: Esta chuva está tramada – exclamei. E uma resposta naturalmente óbvia surge por parte do homem: Isto não está nada bom para esses passeios, chove e faz frio. Sorrio feliz por ter conseguido quebrar o gelo emocional. Numa paragem de metro poderia muito bem não ter tido qualquer resposta. Num banco de autocarro poderia ter sido inconveniente. Nas ruas da baixa de uma cidade poderia ter sido provocador.
Sorrio para um dos cães e ele abana o rabo, olho para uma das vacas enquanto ela se lambe. Era como se ali estivéssemos todos juntos há muito tempo. Na verdade para mim estamos. Eu ainda trago comigo o veneno do tempo, consequência de muitas horas perdidas a olhar para os frenéticos ponteiros de um relógio. Venho de uma sociedade que me ensinou que tempo é dinheiro e onde todos vivem em função dos minutos, dos segundos.
Estou ansioso para que pare de chover para poder continuar. Já descansei o suficiente, já meti conversa e agora está na hora de partir. O olhar pausado destes novos amigos diz-me precisamente o contrário é hora de: descansar, contemplar a chuva, ver o trigo a rebentar da terra, sentir o cheiro das estevas, esticar as pernas, fazer uma preguiça, inspirar profundamente, catar umas pulgas…




Correr ou não correr

Correr não é uma actividade encantadora. É preciso despender de energia para mover o corpo, coragem para continuar quando as pernas já não podem mais, pensar nas coisas boas se surgirem bolhas nos pés, esquecer a sede quando não temos o que beber, fincar os dentes após o surgimento de uma cãibra, parar para tirar uma pedra que entrou nas meias, usar impermeável para a chuva, proteger-nos do calor, ser paciente se o nosso colega de corrida for lento e destemido para acompanhar uma passada mais forte, transpirar, respirar fundo para afastar a dor de burro, evitar a lama nos dias de chuva, estar atento aos carros quando corremos na estrada, evitar os buracos nos trilhos, tratar os entorses, fazer alongamentos, subir encostas quando nos apetece descer, franzir o nariz quando as sapatilhas de corrida se molham com o orvalho matinal, arrepiar-nos para atravessar uma ribeira no inverno e ânimo nos dias tristes.
Poderia ainda acrescentar à lista duas dúzias de justificações para não correr. Duas dúzias de justificações para que hoje seja declarado o dia da gazeta.
As alternativas parecem-me boas e todas elas passam por mergulhar o corpo numa certa inércia, numa perturbante forma de estar imóvel.

São quase dez horas da manhã e se não for correr agora já não o farei no resto do dia. Trago colado ao corpo os calções e uma camisola e nos pés os Salomon XT Wings II denunciam a minha premeditada intenção. Estou pronto, apto para partir. Hesito em despir o casaco porque está frio e já de pé começo por fazer um breve aquecimento num claro desejo de conquistar algum alento para o esforço que se segue. Entro novamente no carro, sento-me, ligo o rádio e espero. Aguardo pela decisão final. Atento à racionalidade, à minha condição de actual ser humano: Já não preciso de correr atrás da caça porque existem supermercados, não necessito de andar porque o meu carro fá-lo por mim e depois há os comandos de televisão, as campainhas que acenam os computadores que escrevem, as empregadas que limpam. Sou um cosmopolita, discuto política, argumento o futebol, atribuo ao sexo feminino as tarefas mais mexidas do quotidiano. Corro mil quilómetros pela aventura porque na verdade de outra forma atingiria com dificuldade os mil metros. Questiono-me se a teoria da evolução das espécies não nos deixou as pernas apenas como mais um apêndice a extinguir por falta de uso. Questiono-me se de futuro não existirão as “pernites” tal como hoje existem as apendicites agudas e se um simples acto cirúrgico não porá fim àquilo que ficou anexado ao nosso corpo, por esquecimento, ao longo dos tempos.

O sol que entra pela janela convida a uma bebida na esplanada do quiosque, a um lanche meio-da-manhã. Ficar a ver quem passa, ficar a ver o tempo passar. Há sempre alguém que está disposto a dois dedos de conversa. Mas depois há a roupa de corrida e os típicos comentários de quem nunca vestiu uns calções, de quem não compreende essa infeliz intenção de movimento – fugir, chispar para não ir a lado nenhum. Não é domingo ou feriado e aqui a presença de uma roupa desportiva opõe-se às vestes do duro trabalho no campo. Por aqui ninguém corre por correr, porque correr não é uma actividade encantadora.



Run.pt: inspirador oficial dos mil quilómetros

Abrando a passada numa clara intenção de encontrar um poiso para recuperar as forças perdidas na subida que serpenteia o monte. Já trepei este caminho vezes sem conta e continuo ainda sem saber quando termina a ascensão.
Olho para baixo e encontro a razão do meu cansaço, olho para cima e vejo apenas mais uma curva e outra e mais outra. Ao longe está o castelo de Aljezur envolto numa pequena névoa de fumo vinda da queimada de uma das hortas do vale. Pelas minhas contas devo estar a atingir o quilómetro duzentos e trinta e oito. Resolvo parar debaixo de uma sobreira. Sento-me num chão de pó alaranjado despreocupado com as consequências futuras do acto. Ao longe o som da música árabe denuncia a presença de uma louca vizinhança das muralhas. Costumo correr por detrás do castelo e é lá que um megafone, preso por uns arames no topo da porta de uma casa caiada, térrea, insiste em tocar diariamente para a população local - músicas alternativas para gentes que por natureza já são alternativas. Olho para os pés e vejo nas sapatilhas de corrida a futura cor da parte detrás dos meus calções – não desgosto. Olho para os pés e lembro-me do Remi e de como todo este desafio começou:
- Olha Jorge tenho uns sapatos que gostaria que testasses, corres com eles por todo o tipo de terrenos e fazes-me três relatórios.
O Remi é um francês que tem uma loja de artigos de corrida trail-running no centro histórico de Aljezur. O Remi é um aliado que partilha as loucuras de uma corrida nocturna de frontal na cabeça por entre montes e vales. O Remi é um bom amigo que facilmente cederia à demência de se meter comigo num avião a meio da noite rumo a África, percorrer as ruas de Marraquexe em passo de corrida e regressar, com a mesma tripulação de voo, passadas algumas horas, para o almoço com a família. O Remi é o responsável por eu estar aqui neste momento.

Acabava de ganhar umas sapatilhas de corrida Salomon Xt Wings II, topo de gama da marca. Se rebentarem, rebentam, se ficarem na boca de um cão ficam, mas se são realmente para testar testam-se - pensei.
Passados alguns dias apresentei a proposta: mil quilómetros, cem dias de teste. Dez quilómetros por dia, vinte se falhar o dia anterior e uma maratona se resolver descansar quatro dias. Correr antes de ir para o trabalho, correr depois de vir do trabalho, correr antes de deixar a família, correr juntamente com a família, correr de noite ou de dia. Correr.
Desde então os calções passaram a fazer parte da minha toilette diária e as sapatilhas de corrida o amuleto desta aventura.

Levanto-me do chão e numa tentativa falhada tento repor o preto dos calções com as mãos. Sigo encosta-a-cima e deixo para trás a vertiginosa subida que um dia ainda farei de uma só vez, mas hoje não.



Quantos quilómetros têm a tua vida?

Meto a mão no bolso à procura da moeda de cinquenta cêntimos que sobrou da compra de um pão de quilo na mercearia da curva, em Aljezur. Retiro-a com cuidado para não deixar cair os seus companheiros de viagem – as chaves do carro, as chaves de casa, um botão de mola, o papelinho com o número do telefone do homem do tractor e um sem número de elásticos para o cabelo. Todos partilharam o mesmo minúsculo espaço ao longo de quarenta quilómetros – a distância que me separa da cidade. Com o indicador e o polegar introduzo o valor na ranhura da máquina que cobra pelo tempo de estacionamento e dou uma vida ao nobre pedaço de metal – um novo ciclo uma nova aventura. Pergunto-me acerca do número de quilómetros que esta moeda terá percorrido, questiono-me se já deu a volta ao país, à Europa, ao mundo. Interrogo-me se sou o único que colecciona as distâncias, se continuarei a correr - já lá vão quatro semanas e pouco mais de quarenta quilómetros percorridos. A ideia de correr os mil quilómetros em cem dias parece cada vez mais distante. A lesão no joelho que trouxe da Ferraria de S. João insiste em permanecer. Se fosse umas semanas antes parava o carro nas vizinhanças a pretexto de mais um treino, hoje procuro lugar em frente do destino final - a farmácia. Entro e ainda não sei se deva pedir uma droga para o corpo ou um bálsamo para o espírito. Não sei qual está mais ferido, qual tenha de tratar primeiro. Explico: quero correr mas não posso dói-me o joelho, quero parar mas não posso magoa-me a alma. Ficamos ambos confusos. Resolvo pedir uma pasta anti-inflamatória para besuntar a perna devolvo mais umas moedas à aventura, ao desafio de percorrer distâncias e deixo o estabelecimento em passo de corrida.




Sete pintos e uma caneca de água

É final de tarde e o sol cega-me o caminho. Vejo pouco mais de um metro à minha frente por entre a nuvem de pó e de fumo que uma espécie de bicicleta motorizada perdeu ao ultrapassar-me na curva que antecede o moinho, a seguir à Casa Alta. Em tempos aqui já cresceram batatas, feijões, tomates, abóboras, pintos, leitões, bezerros, as mulheres, os homens, as crianças. Em tempos aqui a terra dava emprego a dezenas de pessoas. Nos campos ouviam-se os cânticos da lavoura, os risos da juventude, o trotear das carroças. Paro e fico sozinho para limpar dos olhos o suor envolto em terra. Aproveito e com a água tépida de uma torneira local faço uma rápida lavagem à face e cabeça. Encosto a boca ao metal que jorra a água e bochecho duas vezes. Cheira e sabe a ferro.
É verão e o calor é seco e tórrido. Já tinha saudades de uma boa corrida.
Ao fundo das casas vem a Dona Arminda, apoiando os seus oitenta anos em duas canas que transporta com cada uma das mãos, passo a passo. É a última residente do sítio. Coze pão a lenha, cultiva o que come, cria galinhas e vende os ovos. De inverno vai à maré, na época do medronho colhe das árvores o fruto, de verão vai à lenha e às pinhas. Quem a conhece sabe que aqui cresceu e que daqui não sairá pelo seu pé. Viu partir todos os que a acompanhavam tal como vê, dia após dia, o nascer e o pôr-do-sol. Os mais novos foram procurar trabalho no estrangeiro e em Lisboa, os mais velhos trocaram a terra pela agitação da cidade.
Procuro uma sombra para trocar dois dedos de conversa, encontro um tractor que cumpre bem a função. O tempo, o calor e a família são os motivos da conversa. Escuto quem muito tem para contar.

Já com o sol para lá da encosta e depois de ter visto a nova ninhada de pintos que furaram a casca na noite passada, decido percorrer os poucos quilómetros que me faltam para terminar o treino do dia. A aventura de percorrer distâncias recomeçou.